Um desconto de fadas
(ou A história de um ser invertebrado que foi uma nação inteira por algumas horas)
O delirante relato a seguir é inspirado na lenda do folclore jornalístico brasileiro segundo a qual o orçamento público é como o orçamento familiar.
Aconteceu no dia em que não acordei transformado num inseto. Justamente o dia em que havia marcado de ir ao banco, renegociar a dívida do cartão.
O pão, comprado na noite anterior e esquecido sobre o fogão, continuava macio e quentinho. O trem, mesmo às sete, mesmo numa segunda, aglomerava mais assentos vazios do que cotovelos afiados. As ruas até a Caixa exalavam um perfume que eu só tinha sentido na única vez em que entrara na Colombo, para entregar uma encomenda.
Estava tudo tão estranho naquela manhã que até verbo no mais-que-perfeito cruzou uma das minhas frases.
Só faltava a porta giratória rodopiar feito bailarina. Só faltava eu botar os pés na agência sem precisar exibir os bolsos e as intimidades. Não faltou. Incrivelmente, não faltou. E enfim pude experimentar a decepção dos guardinhas, acostumados com a sessão gratuita de strip-tease que eu lhes proporcionava sempre que visitava o lugar.
– O senhor já tentou se reunir com nossos conselheiros e reduzir os juros?
A lista de pequenos milagres não parava de crescer. À sugestão do gerente (de que o corte de alguns pontos percentuais já diminuiria bastante meu débito) se somou o chá com biscoitos que ele ofereceu – e que eu prontamente aceitei, antes que descobrissem o engano e me convidassem a deixar o espaço bambolê... fumacê...
– ... Personnalité!
Não era nem meio-dia, eu já estava de nome limpo e barriga cheia. Passei de novo pela porta giratória – agora a bailarina parecia eu. Dancei, dancei, dancei... e apenas ao parar na porta de casa, quando a música terminou, é que me dei conta de que não tinha sacado a grana do aluguel. O Seu Jair, dono do barraco, só aceitava dinheiro vivo.
– Diz aí quanto você quer, menino! Eu imprimo!
– Tia Flora?!
A madrinha que eu não via desde os seis anos – puf – de repente surgiu cheia de exclamações e boas intenções, como uma fada à procura de sua Cinderela. Saltou de seu Fusca abóbora 76 carregando uma caixa onde cabia, segundo ela, algo muito mais valioso do que varinhas mágicas: uma Casa da Moeda portátil.
O corpo desabituado a uma existência com vértebras não aguentou o tranco – apagou. A consciência voltou logo, felizmente, mas com ela veio junto o medo de abrir os olhos e reencontrar aquela criatura que qualquer chinelo destemido condena à morte. Tive de tomar dois longos fôlegos de coragem antes de erguer, de-va-ga-ri-nho, as pálpebras. Nem sinal das antenas ou da pele viscosa. Da tia também não. Só restaram minha versão humana esticada no sofá e as cédulas impressas empilhadas na estante, ao lado da tevê.
Minto. Restou ainda a pergunta de um, dois, todos os milhões: que fazer para conseguir uma engenhoca como aquela que a madrinha trouxe e destrouxe num bíbidi bóbidi bu? Eu não tinha nem nunca teria verba para uma máquina que certamente custava bem mais do que uma vida de salário.
– A fim de ampliar a arrecadação, o ministro Gregório Silva não descarta a criação de um novo imposto, nem a elevação das alíquotas dos tributos existentes.
A voz de ninguém menos que William Bonner irrompeu na imagem chuviscada da televisão – que acendeu sem que eu sequer me aproximasse do controle-remoto. Mesmo suando horrores e pavores, corri para desligar o aparelho possuído, evitando assim ser sugado para o outro lado da tela, o que provavelmente ocorreria se ele seguisse o manual de todo monitor que concluiu o curso de poltergeist.
Não pude impedir, porém, que as notas fossem levadas na ventania fantasmagórica.
Era bom demais para ser reais.
A dor nas costas que apareceu logo depois de tudo aquilo era o aviso de que as asas ainda estavam ali – e de que, no dia seguinte, eu voltaria a ser esmagado na condução.
Moral da história: você, por mais vértebras que tenha, não pode definir os juros que pagará sobre suas dívidas, não pode emitir moeda, não pode criar, cobrar ou aumentar impostos. Ao escutar qualquer voz jurando que o orçamento de um país e o seu são iguais – pode ser a da sua mãe, do Dalai Lama, do Morgan Freeman –, fuja para bem longe. É encosto.