A vida é prosa ou poesia?
Sempre achei que fosse a primeira. Sempre acreditei que a jornada entre nascer e morrer combinasse mais com as linhas que ocupam as páginas de ponta a ponta, sem quase deixar espaço para o papel em branco e o que ele ainda pode contar. Depois de ler O peso do pássaro morto, de Aline Bei, já não sei mais.
O que vivemos talvez seja demasiadamente caótico para ser dito em parágrafos, continentes de texto que sugerem ordem e solidez. Idas e vindas, perdas e ganhos, começos e recomeços podem até caber em capítulos, como se tivessem saído do gênio de um mestre do folhetim; mas em geral arrombam o cotidiano feito vento forte, estilhaçam as frases e espalham as palavras, formando ilhas a cada instante mais instáveis.
Existir é tão frágil quanto o próximo verso.
Aline leva ao limite essa ideia ao dividir a história de sua protagonista – e transformar episódios cruciais – em poemas de formas livres, cada um deles uma espécie de diário não escrito, redemoinho de incidentes e acidentes, pensamentos e sentimentos, a consciência em fluxo (e fragmentos) de uma mulher desde a infância até a maturidade.
As seções lembram os cantos de uma epopeia, dado o mar revolto que a heroína sem nome atravessa em cinco décadas, e ao mesmo tempo revelam um lirismo que ilumina aquilo que, de tão corriqueiro ou desimportante, invariavelmente passa despercebido – como as cores das frutas na feira ou o chiado da agulha no fim de um disco de Nat King Cole.
Há ainda passagens – e não são raras – cuja escritura é tão bem acabada, cujos temas são tão bem costurados, que funcionam inclusive como obras independentes, estrelas com luz própria: a que descreve um passeio sem coleira com o cão e a que cita o azul tranquilo usado para pintar a casa nova são duas delas.
Ao derramar claridade sobre esses e outros recantos tantas vezes ofuscados pelas dores que enfrentamos – a morte, a violência, o sonho que não vira realidade, o afeto que não vira abraço –, Aline encontra para elas senão a cura, que provavelmente não existe, a possibilidade de que sejam pouco a pouco assimiladas; para a personagem principal, a oportunidade de seguir adiante mesmo com as muitas pedras no meio do caminho.
E a vida, e a vida o que é?
Digo já, meu irmão: a vida é crônica durante o dia, é salmo no meio da noite; é novela hoje, é soneto amanhã; é sequência de orações coordenadas de janeiro a junho, é sucessão de estrofes irregulares de julho a dezembro. A vida às vezes é prosa poética, às vezes é o poeminha mais prosaico – mas nunca deixa de ser, como cada linha nesse romance, imprevisivelmente bonita.