A Amazônia em chamas, o Pantanal em cinzas, a capital paulista envolta numa fumaça preta que fez dela a cidade com o ar mais sujo do mundo.
Dos rios inavegáveis no norte (por causa da seca histórica) às ruas irrespiráveis no sul (por culpa da baixa umidade), é difícil dizer onde o Brasil não arde.
Mas é difícil, sejamos justos, apenas em termos literais, quando tentamos achar um pontinho vermelho no mapa que não simbolize um foco de incêndio. Porque, em sentido figurado, não é não. É fácil até, se ainda tivermos uma gota de honestidade intelectual. E indispensável, se de fato quisermos apontar os responsáveis por transformar o país na filial do inferno com mais chances de substituir a matriz.
O Brasil não arde na cara de quem sabe que o principal agente do desmatamento e das queimadas é o agronegócio – máfia de fazendeiros que bota no chão florestas inteiras em busca de mais pasto para o gado e mais terra para a soja, o milho, além de outras monoculturas – e ainda assim continua anunciando que “agro é tech, agro é pop, agro é tudo”.
Tudo pra quem? Como bem resumiu um dos vários memes críticos a esse modelo econômico que lembra os primórdios da nossa história colonial (o país como exportador de matéria-prima e só de matéria-prima), agora teremos de respirar fuligem e arriscar um câncer nos pulmões pro agroboy lixo comprar iate? pra madame motosserra conhecer Dubai?
O Brasil não arde na cara de quem passa colunas e editoriais exigindo que o governo federal, de um lado, corte em bilhões de reais os próprios gastos e, de outro, desenvolva políticas públicas para enfrentar as mudanças climáticas – o que, segundo qualquer especialista na área, demanda investimentos irrealizáveis se a obsessão por superávits e tetos fiscais prevalecer.
Como ampliamos em milhares o quadro de cientistas, brigadistas, técnicos do Ibama ou do ICMBio e atualizamos a estrutura física desses órgãos dedicados ao meio ambiente – obrigados a monitorar um território continental – sem aumentar significativamente as verbas destinadas a eles? Como adaptamos e preparamos as cidades para resistir a chuvas intensas e temperaturas extremas sem investir pesadamente em obras? Como substituímos o petróleo e seus derivados – que poluem a atmosfera e aquecem o planeta – por energia limpa sem aplicar muito dinheiro em ciência e tecnologia?
O Brasil não arde na cara de quem finge ignorar a responsabilidade de deputados e senadores, hoje “donos” de quase metade do orçamento da União e, em sua maior parte, representantes daquele agro – laranjas tão podres que nem com tragédias recentes, como a que afogou o Rio Grande do Sul, desistiram de aprovar leis que fragilizam ainda mais a proteção aos ecossistemas.
Ou alguém acredita que as mais de duas dezenas de projetos sobre o tema, em tramitação no Congresso e de autoria de Suas Excremências, têm como preocupação a ararinha-azul?
O Brasil não arde na cara de quem até outro dia virava réu por favorecer o contrabando internacional de madeira, oferecia carona para garimpeiros ilegais em avião da Força Aérea e agora – pasmem – choraminga por aí que o governo ao qual pertencia era mais cobrado do que o atual quando o assunto era a preservação dos nossos biomas.
Quem não se recorda do escroque sugerindo “passar a boiada” na legislação ambiental enquanto a imprensa se concentrava na pandemia de covid-19?
A esta lista de fuças enfiadas numa máscara de cinismo (à prova de todo tipo de fogo, mesmo o feito nos Quintos), acrescentemos ainda as de quem dá de ombros para a demarcação de terras indígenas – medida eficaz quando o objetivo é manter as florestas em pé – e para o fato de que o Brasil é um dos países em que mais são mortos ambientalistas – como esquecer os assassinatos de Chico Mendes, Dorothy Stang, Bruno Araújo, Dom Phillips e tantos outros?
Fazer nossos radares detectarem o que não queima nem sob os raios ultraviolentos da realidade é o primeiro passo para reflorestar a esperança de algum futuro.