De repente homens armados e não identificados – mas que sabemos que são agentes do Estado – adentram sua casa. Sem intimação, mandado ou qualquer documento expedido por autoridade competente, levam seu marido para supostamente prestar depoimento – em local desconhecido. Dois ou três ainda permanecem na residência por dias, revirando suas coisas, comendo sua comida, dormindo no seu sofá, interagindo com seus filhos, sem deixar que ninguém entre ou saia, até que decidam a hora de ir embora.
Ainda existe quem diga que não houve ditadura no Brasil no período em que uma cena como essa – aparentemente retirada de um filme de terror – acontecia com frequência.
Aconteceu com Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres no longa Ainda estou aqui, de Walter Salles, baseado no livro de mesmo nome escrito por Marcelo Rubens Paiva.
O que até aquele instante era um lar ensolarado, cheio de música e vida, é subitamente tomado pela escuridão e um silêncio cortante, mais do que realçados – materializados – na sequência em que os invasores fecham bruscamente as janelas para afastar testemunhas: o som do correr das cortinas nos varões lembra uma faca rasgando várias vezes a vítima.
A faca rasga também a plateia. Depois de quase uma hora acompanhando o cotidiano dos Paiva e, em especial, o papel central de Rubens (Selton Mello) naquele ecossistema de afeto, é praticamente impossível não sentir no próprio peito o golpe, como se estivéssemos nós dando o último abraço em alguém da família – da nossa família. Ponto para o roteiro, que investe o tempo necessário para construir essa empatia.
Igualmente crucial para que nos sintamos tão perto daquelas pessoas é o elenco. De Fernanda na pele de mulher e mãe – fortaleza que, sem pirotecnia, aos poucos revela as armas que guarda – a Selton no traje de marido e pai – bússola que, com magnetismo, logo vira referência para quem dela se aproxima –, passando pelas atrizes e o ator que encarnam os filhos, sobressai em cada um tanta espontaneidade que, por alguns momentos, temos a sensação de estar diante de uma coleção de vídeos domésticos.
O helicóptero que irrompe no céu, a blitz que intimida jovens brancos (de um jeito que até hoje intimida jovens pretos), o amigo que fecha a editora e se exila em Londres, a tropa que perfila na praia – não faltam evidências, no entanto, de que estamos cara a cara com uma antologia de pequenos e grandes atos de horror promovidos por um regime que, na história do Brasil, tem sido mais de regra do que de exceção.
Se há exceção aqui, quando se trata de recontar um capítulo do passado autoritário do país, é na forma como os roteiristas retratam a violência: apostam menos no que assistimos do que no que imaginamos, escolha que encontra o ápice na passagem em que Eunice é sequestrada pelos militares e mantida dias numa solitária, de onde escuta tudo aquilo que as paredes de um lugar como aquele – uma repartição da tortura e da morte – nem sempre desejam abafar.
Foram duas décadas e meia até que o Estado admitisse ter assassinado o ex-deputado Rubens Paiva e até que sua esposa recebesse, enfim, o atestado de óbito. Nesse intervalo, ela protegeu os filhos, cuidou deles sozinha, manteve a família unida, ainda se formou em Direito – aos 48 anos – e se tornou uma reconhecida ativista na defesa dos direitos humanos.
Como se não bastasse percorrer estrada tão longa e sinuosa, Eunice chegou até o fim sem entregar aos algozes um troféu que certamente adorariam exibir: a alegria. Não à toa ela faz questão de esconder a tristeza, meses após o sumiço do companheiro, numa sessão de fotos. O plano derradeiro do filme – em que a protagonista, já no corpo de Fernanda Montenegro, já dominada pelo Alzheimer, deixa escapar um sorriso discreto ao posar com os herdeiros – dá à luz o desfecho perfeito para uma história que vai além de um tributo à resistência.
Não há nada que perturbe mais os soldados da morte do que ver a vida seguir em expansão.