O Coringa que existe em mim atiraria um spoiler imenso no título. Mas, como a porção Arthur Fleck ainda está no comando, aviso que arremessarei nas próximas linhas detalhes importantes sobre o enredo de Delírio a dois, continuação do filme de 2019 que investiga a origem do Palhaço do Crime. Se não quiser ser surpreendido por uma revelação explosiva, sugiro que pare de ler imediatamente.
Fleck não é o Coringa. Ou pelo menos não deseja sê-lo. Se no longa anterior o desamparo o empurrava para a destruição de tudo e de (quase) todos, inclusive de si – do homem que tinha o sonho de fazer os outros sorrirem –, aqui o encontro com quem supostamente se importa com ele e a possibilidade de recomeçar a vida ao seu lado o movem na direção contrária.
Está longe de ser uma estrada reta, obviamente. Acumula muitas curvas e conta ainda com a famosa escadaria – que desta vez o protagonista sobe, sem dancinha, no terceiro ato, como se enfim voltasse da deep web dos próprios pensamentos.
Uma jornada tão sinuosa, cujas idas e vindas lembram o dois-pra-cá-dois-pra-lá de um bailado, não tinha como não achar no musical o par perfeito. Além disso, a escolha do gênero reforça a ligação com a obra original, em que a dança é elemento-chave da metamorfose sofrida por Arthur. O que poderia soar mais coerente para que percorrêssemos as celas escuras da mente fraturada do personagem, senão as canções que tocam dentro dele e o incitam/excitam a sair valsando por aí?
Ainda que elas não sejam convertidas em números elaborados e memoráveis nas mãos do diretor Todd Phillips, ao formarem um repertório variado (de Sinatra a Bee Gees, com direito até a hino gospel), refletem a instabilidade psicológica do anti-herói, interpretado novamente com maestria por Joaquin Phoenix. A cena em que ele é entrevistado pelo apresentador Paddy Meyers (Steve Coogan) resume bem a capacidade do ator de despertar compaixão e medo, insinuar sanidade e loucura – tudo ao mesmo tempo.
Já Lady Gaga, por mais que não dê brechas para que duvidemos de seu talento como atriz – e menos ainda como cantora –, não tem muito o que fazer com Lee Quinzel/Arlequina, coadjuvante de uma nota só, tratada pelo roteiro como reles manipuladora, uma Eva venenosa que guarda um único propósito: levar o ídolo para o caminho (da Legião) do mal.
Se falta refinamento ao modo como a vilã é concebida, sobra elegância à maneira como seu fracasso é revelado: nos últimos dias do julgamento pelos cinco assassinatos cometidos dois anos antes, Coringa surge no tribunal sem o verde nos cabelos; adiante, noutra audiência, sem o terno colorido; por fim, a poucos minutos de ouvir a sentença – quando canta ao telefone a versão em inglês de “Ne me quitte pas” –, quase sem maquiagem. A tinta do psicopata havia finalmente desbotado.
A sequência em que Fleck pula do carro e foge do cosplay que tenta protegê-lo – alusão oportuna à sombra demoníaca da animação que abre o filme – não só reafirma visualmente a decisão dele de não se tornar aquele que virá a ser o pior pesadelo de Gotham; evoca também a passagem do primeiro longa na qual o protagonista – na pele de um clown – persegue os garotos que o roubam e depois o espancam, o que conclui uma rima que amarra tematicamente toda a história: o palhaço ingênuo que um dia correu atrás daqueles meninos violentos – e num deles se transformou – na outra ponta da trama corre do palhaço cruel que ele inspirou.
Quem não vê coesão no desenlace ainda imagina acompanhar a tragédia de um algoz.
lindo review.