Era a enésima fala racista de um conhecido bilionário americano e, ao noticiá-la, o repórter a descreveu como uma gafe. Por pouco não engasguei com o termo escolhido. Gafe, segundo os dicionários que consultei assim que cuspi o dissílabo, é uma atitude impensada, desastrada, que fere a etiqueta; um deslize, uma mancada.
Ora, impensada é a ideia que não habita o pensamento, é a crença que não tem nele uma suíte máster e, portanto, não surge tantas vezes na mesma varanda dando tchauzinho. Desastrada é a personagem que derruba vinho tinto no figurino alheio, típica de comédia pastelão. O que fere a etiqueta é a impontualidade, é conversar de boca cheia. Deslize é errar uma letra em exceção. Mancada – grave – é esquecer o aniversário de casamento.
Gafe, tudo isso posto, é parabenizar a suposta futura mamãe e descobrir em seguida que a moçoila não está grávida.
Não, uma fala racista – seja o contexto que for – não é uma gafe; uma fala racista é ato de discriminação, de preconceito, de violência; é discurso de ódio contra um grupo de pessoas historicamente oprimido; é inclusive conduta criminosa que pode levar à prisão o infrator, pelo menos nos lugares que tratam o tema com a seriedade necessária.
Faz tempo que as palavras não batem com as coisas que elas nomeiam. Já usaram descobrimento para acobertar uma invasão sanguinária. Já usaram revolução para esconder um golpe militar. Já usaram reforma para disfarçar a destruição de direitos. Ainda usam guerra para denominar um conflito em que, há meses, só um lado vê a população dizimada e o território devastado – usam guerra para encobrir o que na verdade é uma chacina.
A linguagem não só retrata a paisagem – também ajuda a criá-la. À medida que os significantes são afastados de seus significados, somos paulatinamente apartados da realidade.
Cada substantivo, adjetivo, verbo raramente está onde está por acaso. Qualquer seleção de palavras tem autoria e objetivo. É preciso atenção triplicada quando ouvimos ou lemos – e mais ainda quando reproduzimos o que ouvimos ou lemos, para não corrermos o risco de suavizar o que não pode ser suavizado, de naturalizar o que não pode ser naturalizado, de defender o que jamais deveria ser defendido.
Ninguém aqui quer chegar ao cúmulo de passar a repetir uma palavra tão emblemática quanto liberdade em apoio ao que existe de mais autoritário.